Emiliano José |
Antes de viajar para a Itália, onde fui com uma equipe de companheiros da área de cinema começar o documentário sobre o padre Renzo Rossi, tomei conhecimento do livro “Memórias de uma Guerra Suja”, um longo depoimento de um ex-agente da repressão, Cláudio Guerra, dado aos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto. Não resisti e escrevo sobre a impressionante repercussão que o livro teve e sobre algumas revelações feitas pelo ex-torturador e assassino. Guerra, é importante dizer, não nega essas condições, diferentemente de tantos outros torturadores.
Tenho convicção de que o livro está condenado ao sucesso. Neste caso, por sorte, não houve qualquer boicote por órgãos de nossa grande mídia. O assunto ganhou dimensão nacional, embora, até o momento em que viajei, não na proporção que o assunto merecia. Lembro-me de outro sucesso editorial, que até hoje vende muito, “A privataria tucana”, de Amauri Júnior, que, por azar, foi recebido sob estrondoso silêncio da grande mídia no primeiro momento, só repercutido pelas redes sociais e pelos blogs progressistas. O silêncio, por estranho, acabou por provocar uma explosão de vendagem, curiosamente. Todos queriam saber por que se tentava esconder o assunto.
Saindo dos territórios mágicos da sorte e do azar, diria que o assunto da tortura, dos desaparecimentos forçados de pessoas, dos crimes hediondos da ditadura, veio à tona agora com a força que merecia. Por anos, permaneceu como que submerso, condenado à invisibilidade, como se fosse exagero tudo aquilo que os ex-presos políticos, grupos de direitos humanos, partidos políticos de esquerda diziam sobre a natureza cruel e violenta da ditadura. Agora, uma parte da verdade, da hedionda verdade, aparece na voz de um homem da repressão, que rapidamente é acoimado de louco e desequilibrado pelos seus ex-colegas de crime, de banditismo, de atividades sanguinárias. Será fácil examinar a verdade: basta apenas que todos sejam ouvidos pela Comissão Nacional da Verdade que será brevemente instalada.
Uma usina de cana de açúcar, em Campos, no Rio de Janeiro, foi usada para incinerar 11 ex-prisioneiros políticos, todos nominados por Cláudio Guerra – será que isso não nos remete a Auschwitz?. Um precipício da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, serviu de cova aberta para inúmeros corpos de militantes assassinados pela repressão. Uma casa na Serra de Petrópolis seria cemitério de vários dos adversários da ditadura. Em Minas Gerais, numa mata, Nestor Veras, dirigente comunista, recebeu dois tiros de misericórdia – neste caso, os dois tiros foram dados pelo próprio Cláudio Guerra, que ainda teria ajudado a enterrar ali os corpos de mais dois líderes comunistas. Um cenário de terror – cenário do terrorismo da ditadura.
Já disse: a verdade tem de aparecer, e ela virá, também, pela voz dos próprios torturadores, e está aparecendo. Agora, neste caso, basta que, por exemplo, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o assassino que comandou Operação Bandeirante, em São Paulo, o coronel aviador Juarez e o delegado Aparecido Laertes Calandra, vivos, se disponham a ser acareados com Guerra para que se examine quem está com a verdade. E mais que isso, que outras verdades apareçam. Guerra, aliás, diz que os três participaram do tribunal informal que decretou a morte de outro assassino, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que certamente vivo seria um problema para todos. Pelas condições do Brasil, pela natureza da Comissão Nacional da Verdade, aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, nenhum desses torturadores será preso.
Mas, é fundamental que se saiba, com nitidez, o que foram capazes de fazer. A mando de uma ditadura que tinha consciência de que a morte era sua parceira, sua base de sustentação. Não é à toa que Geisel disse ao jornalista Élio Gaspari, que seu governo tinha que continuar a matar. Os matadores que estão vivos devem, ao menos, explicações à sociedade brasileira. Depois do relatório da Comissão Nacional da Verdade, a sociedade brasileira deve decidir qual o próximo passo. Agora, queremos só a verdade. Não é pedir muito, é?
*Texto publicado originalmente na edição desta segunda-feira, 21, no jornal A Tarde. Emiliano José é jornalista, escritor e suplente de deputado federal (PT-BA)
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